Diante da correria do dia a dia, da saturação de informações e de um senso constante de caos e desorientação, é fácil entender por que nos sentimos tão aflitos, buscando maneiras de anestesiar essa realidade aguda. Além disso, há uma promessa que assombra nossas ações – uma esperança suspensa no ar – uma possibilidade de glória que sempre parece estar ao nosso alcance, mas nunca suficientemente perto.
Vivemos sob o lema: “Tudo é possível. Basta acreditar.” Essas são as boas novas dos nossos dias, pregado aos quatro ventos – especialmente nas redes sociais. Como Byung-Chul Han afirma em Sociedade do Cansaço, para que alguém fique desiludido com as possibilidades da vida, primeiro ela precisa acreditar que tudo é possível. A desilusão só vem diante da crença na possibilidade. E se eu dissesse que existe uma sabedoria antiga que pode nos ensinar a lidar com essa correnteza quase insuportável do ritmo moderno? Você estaria disposto a aprender com a narrativa de criação judaico-cristã princípios para organizar esse caos?
As traduções das escrituras judaicas tendem a maquiar o sentido mais próximo do texto original. A nossa mente, altamente influenciada pela ciência, tenta muitas vezes decifrar na narrativa de Gênesis uma história da origem da matéria. Entretanto, o Dr. John Walton propõe uma linha de pensamento que desafia essa interpretação. Para o Oriente Próximo antigo, a existência tinha muito mais a ver com função do que com suas qualidades materiais.
Existir é ter função em um espaço ordenado
Existir, para o público original de Gênesis 1, estava diretamente ligado ao significado dado às coisas, ao invés de ser simplesmente ocupar um espaço ou “ser real”. Daí a ênfase no ato de nomear. No mundo antigo, os nomes designavam identidade, papel e função. Cosmologias antigas tinham como principal objetivo explicar o funcionamento do cosmos com base no que eles percebiam do mundo e da natureza. Da mesma forma, quando comparamos a narrativa de Gênesis com outras cosmologias, podemos concluir que os autores estavam muito mais preocupados em narrar a origem de funções do que de matéria.
A mente moderna pensa no universo como uma grande máquina ou computador. A mente do Oriente antigo via o universo como um reino ou uma empresa. O primeiro versículo de Gênesis serve como uma introdução ao resto do capítulo. O ato criativo de Deus é marcado por ordenamento e designação de função, criando um sistema em ordem. Quando a tradução diz “sem forma e vazio,” o original se refere a uma terra desértica e infértil, e não a algo sem substância. Deus ordena as águas, a terra e a face do abismo, cria funções (tempo, separando luz e trevas) e coloca seus “funcionários” (sol, lua e estrelas) em seus lugares para marcarem o tempo.
Descançar não é ficar de pernas pro alto
Após o ato criativo, Deus descansa. Na mente moderna, descansar tem a ver com tirar uma soneca e relaxar. Mas se você perguntasse para alguém vivendo no antigo oriente próximo “Onde Deus está descansando?", ele te responderia com um tom de deboche “como assim, é óbvio que descansa no seu templo.” Para o antigo oriente próximo, Deidades descansavam em templos e apenas em templos. E isso é uma das principais proposições de Walton: a narrativa de criação conta a história de como Deus cria o seu templo e o inaugura, descansando nele.
No Oriente Próximo antigo, descanso significava resolução de crises – o momento em que a poeira baixava. Descanso significava não haver mais obstáculos a serem resolvidos, um trabalho livre de resistência ou dificuldade. Podemos concluir, então, que descansar tem a ver com deixar a casa em ordem, resolver o que precisa ser resolvido, ao invés de buscar algo intangível e material que ainda não existe.
Muitas vezes, os ingredientes do descanso estão diante de nós, aguardando ordenamento, mas nós não os percebemos, ocupados demais com o ruído da vida. Às vezes, nosso coração está apenas esperando que organizemos internamente o que precisa de ajuste para finalmente repousar.
Olhar mais pro coração e menos pras telas
James K. A. Smith afirma que não são as regras ou a descrição de um objetivo que nos fazem trabalhar em direção a algo, mas a pintura de uma visão, um ideal a ser alcançado. Quando Deus dá ao homem a tarefa de nomear os animais e o chama a cuidar e cultivar o jardim, Ele está convidando o ser humano a participar da natureza criadora divina. Precisamos, então, prestar atenção às áreas da nossa vida que precisam de ordenamento. O mundo caótico, saturado pelas redes sociais, nos leva a evitar questionamentos verdadeiramente importantes. Olhamos cada vez mais para as telas e menos para o nosso coração, ou para o mundo ao nosso redor. Aparentemente, a dor do mundo só existe através dos uns e zeros da tela do celular. Trocamos o mundo real pelo digital. Se a realidade não está empacotada em um reels de 15 segundos, ela não existe – não tem valor e não importa.
Este é o primeiro e-mail dessa newsletter que criei após abolir as redes sociais da minha vida. Eu te convido a fazer o mesmo. A sensação de sobriedade diante do mundo e da realidade é algo que eu nem lembrava que sentia falta. Tenho percebido que as coisas estão voltando a fazer sentido, que alguns sentimentos estão voltando ao eixo. Voltei a fazer coisas criativas e, milagrosamente, comecei a não odiar tanto o meu trabalho. Perguntas sobre meu propósito têm surgido dentro do meu coração, assim como sobre o que posso contribuir para o mundo e para as pessoas ao meu redor. As lentes do mundo digital só me faziam ver minha vida como algo sem forma e vazia. Mas, na realidade, ela estava mais para um jardim mal cuidado.
Hoje voltei a regar as plantas.
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Achados nas interwebs
☕️
Sala de espera é uma playlist que combina músicas que me inspiram enquanto continuo na caminhada, especialmente enquanto espero. Atualizo a playlist sempre então vale a pena seguir! :)
🎙️
A oração e a saúde da alma é a mensagem que o Ed René Kivitz pregou na ibab no dia 29 de Setembro de 2024. É um chamado de volta àqueles que esqueceram da importância da oração na nossa vida pra lidar com o cotidiano. Dica: ajuda a reordenar o coração.
🌎
Sem tradução ainda, O Mundo Perdido de Gênesis 1 de John Walton é uma leitura essencial em inglês, revelando novas perspectivas sobre a criação focada em propósito e função. Vale muito a pena! (foi o texto que me inspirou a escrever essa newsletter 😄 )
❤️
Você é Aquilo que Ama de James K. A. Smith mostra como nossos desejos moldam quem somos. Ele afirma que o discipulado deve focar em reorientar nossos amores e hábitos, não apenas em transmitir conhecimento.
